Fases do renascimento
Trecento
O Trecento representa a preparação para o Renascimento e é um fenômeno basicamente italiano, mais especificamente da cidade de Florença, pólo político, econômico e cultural da região, embora outros centros também tenham participado do processo, como Pisa e Siena, tornando-os a vanguarda da Europa em termos de economia, cultura e organização social, conduzindo a transfomação do modelo medieval para o moderno.
A economia era dinamizada pela fundação de grandes casas bancárias, pelo surgimento da noção de livre concorrência e pela forte ênfase no comércio, e cada vez mais se estruturava em moldes capitalistas e bastante materialistas, onde a tradição era sacrificada diante do racionalismo, da especulação financeira e do utilitarismo. O sistema de produção desenvolvia novos métodos, com uma nova divisão de trabalho organizada pelas guildas e uma progressiva mecanização, mas levando a uma despersonalização da atividade artesanal. A Itália nesta época era um mosaico de pequenos países e cidades independentes. O regime republicano com base no racionalismo fora adotado por vários daqueles Estados, e a sociedade via crescer uma classe média emancipada intelectual e financeiramente que se tornaria um dos principais pilares do poder e um dos sustentáculos de um novo mercado de arte e cultura.
O início do século viveu intensas lutas de classes, com prejuízo para os trabalhadores não vinculados às guildas, e como conseqüência instalou-se grave crise econômica, que teve um ponto culminante na bancarrota das famílias Bardi e Peruzzi em torno de 1328, gerando uma fase de estagnação que não obstante levaria a pequena burguesia pela primeira vez ao poder. Esta situação foi comentada depreciativamente pelos poetas célebres da época - Boccaccio e Villani - mas constituiu a primeira experiência democrática em Florença, durando um intervalo de cerca de quarenta anos. Tumultos políticos e militares, além de duas devastadoras epidemias de peste bubônica, provocaram períodos de fome e desalento, com revoltas populares que tentaram modificar o equilíbrio político e social, mas só conseguiram assegurar a permanência dos burgueses à testa do governo. Os Médici, banqueiros plebeus, assumiram a liderança da classe mas logo se revestiram da dignidade da nobreza, e um sistema oligárquico voltou a dominar a cena política, muitas vezes se valendo da corrupção para atingir seus fins, mas também iniciando um costume de mecenato das artes que seria fundamental para a evolução do classicismo no século seguinte.
Na religião a mudança foi assinalada pela busca, amparada pela ciência, de explicações racionais para os fenômenos da natureza; por uma nova forma de ver as relações entre Deus e o homem, e pela idéia de que o mundo não deveria ser renegado, mas vivenciado plenamente, e que a salvação poderia ser conquistada também através do serviço público e do embelezamento das cidades e igrejas com obras de arte, além da prática de outras ações virtuosas. Deve-se frisar que mesmo com a crescente influência clássica, que era toda pagã na origem, o Cristianismo jamais foi posto em xeque e permaneceu como um pano de fundo ao longo de todo o período, criando-se a síntese original que conhecemos hoje.
Quattrocento
O chamado Quattrocento (século XV) viu o Renascimento atingir sua era dourada. O Humanismo amadurecia e se espalhava pela Europa através de Ficino, Rodolphus Agricola, Erasmo, Mirandola e Thomas More. Leonardo Bruni inaugurava a historiografia moderna e a ciência e a filosofia progrediam com Luca Pacioli, János Vitéz, Nicolas Chuquet, Regiomontanus, Nicolau de Cusa e Georg von Peuerbach, entre muitos outros.
Ao mesmo tempo, um novo interesse pela história antiga levou humanistas como Niccolò de' Niccoli e Poggio Bracciolini a vasculharem as bibliotecas da Europa em busca de livros perdidos de autores como Platão, Cícero, Plínio, o Velho, e Vitrúvio. O mesmo interesse fez com que se fundassem grandes bibliotecas na Itália, e se procurasse restaurar o latim, que havia se transformado em um dialeto multiforme, para sua pureza clássica, tornando-o a nova língua franca da Europa. A restauração do latim derivou da necessidade prática de se gerir intelectualmente essa nova biblioteca renascentista. Paralelamente, teve o efeito de revolucionar a pedagogia, além de fornecer um substancial corpus de estruturas sintáticas e vocabulário para uso dos humanistas e dos homens de letras, que assim revestiam seus próprios escritos com a autoridade dos antigos. Também foi importante a febre de colecionismo de arte antiga que se verificou entre os poderosos, que acompanhavam de perto escavações a fim de enriquecer seus acervos privados com obras de escultura e outras relíquias que vinham à luz, impulsionando o desenvolvimento da ciência da arqueologia. A reconquista da Península Ibérica aos mouros também disponibilizou para os eruditos europeus um grande acervo de textos de Aristóteles, Euclides, Ptolomeu e Plotino, preservados em traduções árabes e desconhecidos na Europa, e de obras muçulmanas de Avicena, Geber e Averróis, contribuindo de modo marcante para um novo florescimento na filosofia, matemática, medicina e outras especialidades científicas. Para acrescentar, o aperfeiçoamento da imprensa por Johannes Gutenberg em meados do século facilitou e barateou imenso a divulgação do conhecimento.
Um novo vigor nesse processo foi injetado pelo erudito grego Manuel Chrysoloras, que entre 1397 e 1415 introduziu na Itália o estudo da língua grega, e com o fim do Império Bizantino em 1453 muitos outros intelectuais, como Demetrius Chalcondyles, Jorge de Trebizonda, Johannes Argyropoulos, Theodorus Gaza e Barlaam de Seminara, emigraram para a península Itálica e outras partes da Europa divulgando muitos textos clássicos de filosofia e instruindo os humanistas na arte da exegese. Grande proporção do que hoje se conhece de literatura e legislação greco-romanas nos foi preservado por Bizâncio, e esse novo conhecimento dos textos clássicos originais, bem como de suas traduções, foi, no entender de Luiz Marques, "uma das maiores operações de apropriação de uma cultura por outra, comparável em certa medida à da Grécia pela Roma dos Cipiões no século II a.C. Ela reflete, além disso, a passagem, crucial para a história do Quatrocentos, da hegemonia intelectual de Aristóteles para a de Platão e de Plotino. Nesse grande influxo de idéias foi reintroduzida na Itália toda a estrutura da antiga Paideia, um corpo de princípios éticos, sociais, culturais e pedagógicos concebido pelos gregos e destinado a formar um cidadao modelar. As novas informações e conhecimentos e o concomitante progresso em todas as áreas da cultura levaram os intelectuais a perceberem que se achavam em meio a uma fase de renovação comparável às fases brilhantes das civilizações antigas, em oposição à Idade Média anterior, que passou a ser considerada uma era de obscuridade e ignorância.
Ao longo do Quattrocento Florença se manteve como o maior centro cultural do Renascimento, atravessando um momento de grande prosperidade econômica e conquistando também a primazia política em toda a região, apesar de Milão e Nápoles serem rivais perigosos e constantes. A opulência da sua oligarquia burguesa, que então monopolizava todo o sistema bancário europeu e adquiria um brilho aristocrático e grande cultura, e se entregava à "bela vida", gerou na classe média uma resistência retrógrada que buscou no gótico idealista um ponto de apoio contra o que via como indolência da classe dominante. Estas duas tendências opostas deram o tom para a primeira metade deste século, até que a pequena burguesia enfim abandonou o idealismo antigo e passou a entrar na corrente geral racionalista. Foi o século dos Medici, destacando-se principalmente Lorenzo de' Medici, grande mecenas, e o interesse pela arte se difundia para círculos cada vez maiores.
Alta Renascença
A Alta Renascença cronologicamente engloba os anos finais do Quattrocento e as primeiras décadas do Cinquecento, sendo delimitada aproximadamente pelas obras de maturidade de Leonardo da Vinci (a partir de c. 1480) e o Saque de Roma em 1527. Foi a fase de culminação do Renascimento, que se dissipou mal foi atingida, mas seu reconhecimento é importante porque ali se cristalizaram ideais que caracterizam todo o movimento renascentista: o Humanismo, a noção de autonomia da arte, a emancipação do artista de sua condição de artesão e equiparação ao cientista e ao erudito, a busca pela fidelidade à natureza, e o conceito de gênio, tão perfeitamente encarnado em Da Vinci, Rafael e Michelangelo. Se a passagem da Idade Média para a Idade Moderna não estava ainda completa, pelo menos estava assegurada sem retorno possível. Eventos como a descoberta da América e a Reforma Protestante, e técnicas como a imprensa de tipos móveis, transformaram a cultura e a visão de mundo dos europeus, ao mesmo tempo em que a atenção de toda a Europa se voltava para a Itália e seus progressos, com as grandes potências da França, Espanha e Alemanha desejando sua partilha e fazendo dela um campo de batalhas e pilhagens. Com as invasões a arte italiana espalhou sua influência por uma vasta região do continente
Foi na Alta Renascença que a arte atingiu a perfeição e o equilíbrio classicistas perseguidos durante todo o processo anterior, especialmente no que diz respeito à pintura e à escultura. Pela primeira vez a Antiguidade era compreendida como um todo unificado e não como uma sequência de eventos isolados, levando a arte a descartar a simples imitação decorativa do antigo e troca de uma emulação mais completa, mais essencial e também muito mais erudita. Porém esse classicismo, embora maduro e rico, conseguindo plasmar obras de grande pujança, comparáveis à arte antiga, tinha forte carga formalista, espelhando o código de ética artificial, cosmopolita e abstrato que se impunha entre os círculos ilustrados e que prescrevia a moderação, autocontrole, dignidade e polidez em tudo, e que teve na pintura de Rafael e na música de Palestrina seus mais perfeitos representantes artísticos, e no livro O Cortesão de Baldassare Castiglione sua súmula teórica. O idealismo que foi intensamente cultivado na antigüidade clássica encontrava uma atualização e, segundo Hauser,
Apesar desse código de ética, era uma sociedade agitada por mudanças políticas, sociais e religiosas importantes em que a liberdade anterior desapareceu, e o autoritarismo e a dissimulação se ocultavam por trás das normas de boa educação e da disciplina, como se lê em O Príncipe, de Maquiavel, um manual de governo que dizia que "não existem boas leis sem boas armas", não distinguindo poder de autoridade e legitimando o uso da força para controle do cidadão, livro que foi uma referência fundamental do pensamento político renascentista e uma inspiração decisiva para a construção do Estado moderno. Assim, a grande diferença de mentalidade entre o Quattrocento e o Cinquecento é que enquanto naquele a forma é um fim, neste é um começo; enquanto naquele a natureza fornecia os padrões que a arte imitava, neste a sociedade precisará da arte para provar que existem tais padrões. Rafael resumiu os opostos em seu famoso afresco A Escola de Atenas, uma das mais importantes pinturas da Alta Renascença, realizada na primeira década do Cinquecento, que ressuscitou o diálogo filosófico entre Platão e Aristóteles, ou seja, entre o idealismo e o empirismo. Nesse período se observou o paulatino deslocamento do maior centro cultural renascentista de Florença para Roma, com a proteção do papado e o crescente afluxo de artistas de outras partes.
O Cinquecento e o Maneirismo italiano
O Cinquecento (século XVI) é a derradeira fase da Renascença, quando o movimento se transforma, se expande para outras partes da Europa e Roma sobrepuja definitivamente Florença como centro cultural, especialmente a partir do pontificado de Júlio II. Roma até então não havia produzido grandes artistas renascentistas, e o classicismo havia sido plantado através da presença temporária de artistas de outras partes. Mas com a fixação na cidade de mestres do porte de Rafael, Michelangelo e Bramante formou-se uma escola local, tornando-a o mais rico repositório da arte da Alta Renascença e da sua continuação cinquecentesca, onde a política cultural do papado deu uma feição característica a toda esta fase. Boa parte dessa nova influência romana derivou do desejo de reconstituir a grandeza e a virtude cívica da Roma Antiga, o que se refletiu na intensificação do mecenato e na recriação de práticas sociais e simbólicas que imitavam as da Antiguidade, como os grandes cortejos de triunfo, as festas públicas suntuosas, as representações plásticas e teatrais grandiloquentes, cheias de figuras históricas, mitológicas e alegóricas.
Na seqüência do saque de Roma de 1527 e da contestação da autoridade papal pelos Protestantes o equilíbrio político do continente se alterou e sua estrutura sócio-cultural foi abalada, com conseqüências negativas principalmente para a Itália, que além de tudo deixava de ser o centro comercial da Europa enquanto novas rotas de comércio eram abertas pelas grandes navegações. Todo o panorama mudava de figura, declinando a influência católica, perdendo-se a unidade cultural e artística recém conquistada na Alta Renascença e surgindo sentimentos de pessimismo, insegurança e alheamento que caracterizam a atmosfera do Maneirismo. Apareceram escolas regionais nitidamente diferenciadas em Roma, Florença, Ferrara, Nápoles, Milão, Veneza, e o Renascimento se espalhou então definitivamente por toda a Europa, dando frutos em especial na França, Espanha e Alemanha, tingidos pelos históricos locais específicos. A arte de longevos como Michelangelo e Ticiano registrou em grande estilo a transição de uma era de certezas e clareza para outra de dúvidas e drama que viu aparecer a Contra-Reforma e se dirigia para o Barroco do século XVII.
Um dos impactos mais importantes da Reforma Protestante sobre a arte renascentista foi a condenação das imagens sagradas, o que despovoou os templos do norte de representações pictóricas e escultóricas de santos e personagens divinos, e muitas obras de arte foram destruídas em ondas de fúria iconoclasta. Com isso as artes representativas sob influência reformista se voltaram para os personagens profanos e a natureza. O papado, porém, logo percebeu que a arte podia ser uma arma eficiente contra os protestantes, auxiliando em uma evangelização mais ampla e mais sedutora para as grandes massas do povo, e durante a Contra-Reforma foram sistematizados uma nova série de preceitos baseados na teologia contra-reformista, que determinavam em detalhe como o artista deveria criar sua obra de tema religioso. Mas assim, se por um lado a Contra-Reforma deu origem a mais encomendas de arte sacra pela Igreja Católica, a antiga liberdade de expressão artística que se verificara em fases anteriores desapareceu, uma liberdade que permitira a Michelangelo decorar seu enorme painel do Juízo Final, pintado no coração do Vaticano, com uma multidão de corpos nus de grande sensualidade, ainda que o campo profano permanecesse pouco afetado pelas novas regras, que eram bastante dogmáticas e moralistas Apesar disso, as aquisições intelectuais e artísticas da Alta Renascença que ainda estavam frescas e resplandeciam diante dos olhos não poderiam ser esquecidas de pronto, mesmo que seu substrato filosófico já não pudesse permanecer válido diante dos novos fatos políticos, religiosos e sociais. A nova arte que se fez, ainda que inspirada na fonte do classicismo, o traduziu em formas inquietas, ansiosas, distorcidas, agitadas, ambivalentes, apegadas a preciosismos intelectualistas, características que refletiam os dilemas do século.
O Maneirismo, que cobre os dois terços finais do século XVI e depois se confunde com o Barroco, foi um movimento que tem gerado historicamente muito debate entre os historiadores da arte. Depois do século XVII ele passou a ser encarado com desprezo, como uma degeneração mórbida e afetada dos ideais clássicos autênticos. Nos dias de hoje, porém, essa visão já não permanece, tendo sido revisada através de duas vertentes da crítica. Para uns ele se manifestou em uma área geográfica tão vasta e de maneira tão polimorfa e tão distinta do Quattrocento e da Alta Renascença, que se tornou um dilema inconciliável descrevê-lo como parte do fenômeno original, basicamente classicista e italiano, pois parece-lhes que em muitos sentidos ele constitui uma completa antítese dos princípios clássicos de proporção equilibrada, unidade formal, clareza, lógica e naturalismo, tão prezados pelas fases anteriores e que definiriam o "verdadeiro" Renascimento. A consequência foi estabelecer o Maneirismo como um movimento independente, reconhecendo uma nova e vigorosa forma de expressão no que se chegou a ver como decadência e distorção, tendo sua importância realçada por esses traços fazerem dele a primeira escola moderna de arte. A outra vertente crítica, contudo, o analisa como um aprofundamento e um enriquecimento dos pressupostos clássicos e como uma legítima conclusão do ciclo do Renascimento; não tanto uma negação ou desvirtuamento daqueles princípios, mas uma reflexão sobre sua aplicabilidade prática naquele momento histórico e uma adaptação - às vezes dolorosa mas em geral criativa e bem sucedida - às circunstâncias da época.